A trajetória de Simone de Beauvoir
Para que se compreenda o pensamento de Simone é preciso
retornar à sua infância, quando vivia com seus pais Georges Bertrand de Beauvoir, um advogado em tempo integral e
ator amador, e Françoise Brasseur, uma jovem mulher de Verdun. Beauvoir foi uma
criança atraente e mimada e já demonstrava uma personalidade forte:
“(...)
Tinha caprichos, desobedecia simplesmente pelo prazer de desobedecer. Nas
fotografias de família eu mostro a língua, viro as costas e em torno de mim os
outros riem. Essas pequenas vitórias animaram-me a não considerar insuperáveis
as regras, os ritos, a rotina; constituem as raízes de certo otimismo que devia
sobreviver a todos os processos de domação.”
(BEAUVOIR, 1958,
pp. 18)
Simone de Beauvoir na infância.
As diferenças entre as personalidades dos pais são citadas por Simone
com um ingrediente no qual ela acredita ser inclusive, uma das razões pela qual
tenha se tornado uma intelectual, conforme o trecho a seguir:
“Minha situação familiar lembrava a de meu pai; ele se encontrara mal assentado entre o ceticismo desenvolto de meu avô e a seriedade burguesa de minha avó. No meu caso também, o individualismo de papai e sua ética profana contrastam com a severa moral tradicionalista que mamãe me ensinava. Esse desequilíbrio que me impelia à contestação explica em grande parte que tenha me tornado uma intelectual”
(BEAUVOIR , 1958,pp. 45)
A influência
de seu pai foi além dos ensinamentos repassados durante a infância, sendo dele
a responsabilidade de haver influenciado Simone na opção de prosseguir com
dedicação aos estudos. Costumava dizer às suas filhas:
“‘Vocês,
meninas, não casarão’, repetia amiúde. ‘Vocês não tem dote, precisarão
trabalhar ‘” (BEAUVOIR,1958,pp. 106)
Beauvoir sempre esteve consciente de que seu pai esperava ter um filho,
ao invés de duas filhas. Ele afirmava que Simone pensava como um homem, o que
lhe agradava muito e desde muito jovem ela distinguiu-se nos estudos. No Curso
Désir, primeira escola que frequentou, desenvolveu um grande amor pela
aprendizagem e foi uma aluna exemplar. Foi também nesse curso, nos anos finais,
que Beauvoir foi apresentada à Filosofia. Por ser um curso de fundamentação
basicamente católica, típico das escolas para garotas no inicio do século XX, o
contato restringiu-se aos autores clássicos e as noções gerais. Georges de
Beauvoir passou seu amor pelo teatro e pela literatura para sua filha. Ele
ficou convencido de que somente o sucesso acadêmico poderia tirar as filhas da
pobreza. Poupette, sua irmã, tornou-se uma pintora.
Apesar da forte influência religiosa da mãe exercida durante a infância,
aos poucos Simone foi abandonando a crença em Deus, à medida que não achava
respostas aceitáveis aos seus questionamentos, de modo que na adolescência
declarou incrédula na existência divina, ainda que já tivesse até mesmo
cogitado a possibilidade de ser freira:
“O que havia
de embaraçoso era que Deus proibia muitas coisas, mas não exigia nada de
positivo, a não ser algumas orações, algumas práticas que não modificavam o
curso dos dias. (...) No fundo, os que acreditavam e os que não acreditavam
levavam quase a mesma essência. Persuadi-me dia a dia mais de que, no mundo
profano, não havia lugar para a vida sobrenatural”
(BEAUVOIR,
1958,. pp. 77)
É interessante observar que Simone, através de seus questionamentos,
possuía um senso crítico apurado, que não era muito comum às mulheres naquela
época, sobretudo na idade em que se encontrava. Antes mesmo de chegar à vida
adulta, conhecia as diferenças de classes e tinha suas opiniões formadas a
respeito:
“Toda
a minha educação me assegurava que a virtude e a cultura contam mais do que a
fortuna: meus gostos induziam-me a acreditá-lo. (...) Os miseráveis, os
moleques, eu os considerava excluídos da sociedade; mas também os príncipes e
os militares acham-se insólita afastava-os dele.”
(BEAUVOIR, 1958, pp. 77)
Não obstante a influência de seu âmbito familiar e seu senso crítico a
respeito da sociedade na qual vivia, Simone obteve também a influência de seu
primeiro relacionamento afetivo, com Jacques Champigneulle, com quem a família
esperava que ela se casasse e o que, no entanto, não ocorreu. Embora poucas
vezes citado em suas memórias, essa relação foi de grande importância à vida de
Simone:
“Encarava
Jacques como uma espécie de irmão. Ajudava-me a fazer minhas traduções latinas,
criticava a escolha de minhas leituras, dizia-me versos. Uma tarde à sacada
recitou-me La Tristesse d´Olympio e eu me lembrei com uma dorzinha no coração
de que tínhamos sido noivos. (...)”
(BEAUVOIR, 1958, pp. 123)
Outro fato que influenciou na vida de Simone, foi a perda precoce de sua
grande amiga Elizabeth Le Coin, conhecida como Zazá. Grande parte de sua
mudança e ideologia teve influência de Zazá. Segundo a autora, foi através da
amiga que ela escolheu não casar-se e nem ser freira. Zazá tinha pensamentos
críticos aos valores burgueses e repudiava os comportamentos da sociedade.
Falava o que pensava para quem o quisesse ouvir. Coisas que Simone também
pensava, mas não tinha coragem de dizer em voz alta. O trecho a seguir relata o
sentimento que permeou Simone após a perda da amiga:
“Juntas
havíamos lutado contra o destino lamacento que nos espreitava e pensei durante
muito tempo que pagara minha liberdade com sua morte”
(BEAUVOIR,1958, pp. 368)
Finalmente, seu encontro com Sartre
ocorreu durante a faculdade. Simone relata em suas memórias o sentimento de
identificação que teve ao conhecê-lo melhor, sentimento esse que se assemelha a
um amor desejado aos quinze anos. Segundo ela, via nele alguém cuja até mesmo
as manias eram semelhantes:
“Sartre
correspondia exatamente aos meus sonhos de quinze anos: era o duplo, em quem eu
encontrava, elevadas ao extremo, todas as minhas manias. Com ele, poderia
sempre tudo partilhar. Quando o deixei, em princípio de agosto [de 1929], sabia
que nunca mais ele sairia da minha vida.”
(BEAUVOIR, 1958,pp.
345)
O sentimento de Simone para com Sartre era recíproco; na obra “Diário de
uma guerra estranha”, o autor comenta sobre a relação de ambos:
(SARTRE, 1976. pp.46)
Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre
Desenvolveu-se a partir de então uma relação que durou por toda a vida.
Simone passou a ser carinhosamente chamada de Castor por Sartre, esse apelido não dado por ele, na verdade foi seu amigo Maheu. O motivo era a semelhança do sobrenome Beauvoir com a
palavra Beaver, castor em inglês, e porque Simone era trabalhadora como um
castor. Em vários livros do autor lê-se na dedicatória: “Ao Castor”.
Caminharam lado a lado, dedicando um ao outro muito mais do que
sentimentos, mas também conhecimento, viagens, estudos e livros, numa relação
aberta na qual o único compromisso de ambos era com a liberdade e havia espaço
para relações paralelas, entre elas uma de grande relevância que teve com o escritor norte-americano Nelson Algren. Essa parceria durou até o final da vida de Sartre,
como consta na última obra de Simone: “A Cerimônia do Adeus”; obra narra os dez
últimos anos de vida de Sartre e o desenvolvimento de sua doença, que o levou a
cegueira total. Trata-se de uma obra extensa e de grande valor sentimental.
Ainda no prefácio, Simone anuncia que esse será seu último livro:
“Eis aqui meu primeiro livro - o único certamente - que você não leu antes que o imprimissem. Embora todo dedicado a você, ele já não lhe concerne. “
(BEAUVOIR, 1982,
prefácio)
Após
a morte de Sartre, Simone viveu ainda durante seis anos, porém muito debilitada
devido a uma pneumonia adquirida durante a degeneração da saúde de seu
companheiro, época em que descuidou-se absolutamente de sua saúde por conta da
doença que ele enfrentava. Simone e Sartre encontram-se enterrados no mesmo
túmulo, como não haveria de ser diferente após terem compartilhado toda a vida.
Túmulo onde Simone e Sartre estão sepultados.
A trajetória de Simone ainda muito mais extensa e interessante do que vimos até aqui, há ainda muito o que abordar, como o envolvimento direto com o feminismo, sua visita ao Brasil, entre outros assuntos de um material cuja fonte é inesgotável.
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