sexta-feira, 28 de março de 2014

A menina do sorriso bonito (e toda a dor por trás)

Veio do nada, uma ideia de trocar sua foto  de perfil pela de uma pessoa morta ou desaparecida por causa do regime militar. Entre tantas histórias, fotos e revelações tristes, me deparo com um sorriso, um sorriso que me paralisa. Era o sorriso de uma menina bonita, não exatamente pela beleza física, mas pela beleza daquelxs que lutam sem nunca perderem a doçura. Fiquei muito curiosa com esse sorriso, parecia uma pessoa feliz. Então, comecei a pesquisar tudo o que pudesse estar além dessa imagem.  

                                                                   Maria Lucia Petit - divulgação

   A menina linda do sorriso bonito tem nome: Maria Lucia Petit. Maria, como era conhecida pelos companheiros, era professora primária, dedicava-se ao ensino para crianças nas regiões rurais e contava 22 anos quando foi vista pela última vez com vida. O que Leva uma jovem professora a abdicar de “suas crianças” e entregar-se à Guerrilha do Araguaia, senão o sonho de ajudar a construir uma sociedade melhor, mais igualitária e livre?

   Infelizmente a guerrilha não teve o apoio das massas e por essa razão muita gente perdeu sua vida. O regime “comprou” o apoio de alguns proprietários de terras ao redor dos acampamentos, por uma quantia miserável entregavam onde os “paulistas” estavam escondidos.
Voltando ao sorriso de Maria Lucia, esse foi apagado de forma covarde. Existia um camponês, o qual a professora considerava amigo/aliado, esse “amigo” contribuía com mantimentos e itens de primeira necessidade ao acampamento. Acompanhada de outros dois companheiros, Maria Lucia foi ao encontro dele para, como de costume, buscar alguns produtos. No entanto, tratava-se de uma emboscada, o próprio amigo (até então de confiança) desferiu-lhe dois tiros: um no quadril (que a fez cair de joelhos) e outro no peito, matando-a instantaneamente.
   Era o fim de uma vida, da vida de uma jovem professora, de uma filha, de uma militante, de uma mulher. Os militares envolveram seu corpo em uma paraquedas e enterraram em Xambioá, no Tocantins. Lá, o corpo de Maria Lucia permaneceu por muitos anos, até ser encontrado em 1991 e finalmente reconhecido e enterrado em 1996. Maria só tinha 22 anos.

   Indo mais adiante, essa história é ainda mais triste. Maria Lucia era antes de tudo, mais uma dos irmãos Petit da Silva, a família era constantemente vigiada pelos órgãos de espionagem da ditadura desde 1969. Seus irmãos, Jaime e Lucio, tiveram o mesmo fim que Maria Lucia. “A minha família foi dizimada” disse Laura Petit a respeito do que o regime militar fez com seus irmãos. Durante muitos anos a mãe aguardava o retorno dos filhos, acreditava que estariam presos em algum lugar ou exilados fora do Brasil e sem condições de se comunicar, essa espera durou a vida inteira no caso de Jaime e Lucio. Maria Lucia só teve seus restos mortais reconhecidos devido a uma matéria do jornal O Globo , em 1996, que trazia fotos (entregues anonimamente por um militar) de guerrilheiros mortos e sem identificação, a família Petit reconheceu a professora, a foto trazia detalhes idênticos aos da ossada encontrada em Xambioá (no ano de 1991) e foi encaminhada ao Departamento de Medicina Legal da Unicamp. Maria Lucia agora está enterrada em Bauru, já seus irmãos não tiveram seus restos mortais encontrados até hoje.



                                                                                       Jaime Petit - divulgação

                                                                              Lucio Petit - divulgação

   Essa é apenas uma das muitas histórias dessas pessoas que entregaram suas vidas à luta por igualdade social e liberdade.

Companheira Maria Lucia Petit, presente!

Irmãos Petit, presente!

52 anos do GOLPE militar
52 anos da VERGONHA MILITAR



Fontes:

Para exaltar a raiva:

"Onde fica o desespero
De quem ainda procura
Abra os seus arquivos
Covardes militares!"




quinta-feira, 6 de março de 2014

Somos todxs Marias

"Maria, Maria
É um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece
Viver e amar
Como outra qualquer
Do planeta" (Milton Nascimento)


                                                                                                           trabalhadoras mineiras 

Maria Elis Regina, Maria Nara Leão, Maria Ana Carolina e até mesmo Maria Milton Nascimento. Se somos todas e TODOS mulheres, somos todas Marias, mulheres comuns, mulheres operárias e professoras, donas de casa, mães e militantes. 

O Dia das Mulheres tornou-se uma data simbólica repleta de intenções capitalistas para aumentar a venda de produtos femininos, opa, produtos o que? 


Há um equivoco muito grande nessa história toda, há um bom tempo (muito antes de meu nascimento,inclusive) essa data vem sendo destorcida de maneira notória: compra-se um perfume, flores e chocolate para agradar a "sua mulher", como se isso fosse o suficiente para suprir a falta de respeito cotidiana, como por exemplo a louça suja ou o banheiro que ela sempre precisa limpar sozinha... Ou pior ainda: uma lingerie erótica, bem bonita para a "sua mulher usar" ou será que serve para usar a mulher com ela? O ruim não é ganhar presentes, a questão é o que há de intenção nessas atitudes aparentemente tão inocentes, mas que não são.


                                                                                                 propaganda do Veja

Nada mais me irrita do que uma propaganda de produto de limpeza com uma mulher de protagonista, como se a mulher devesse ser sempre a protagonista do serviço doméstico. No caso dessa imagem de cima, é interessante o nome do produto que remete a uma revista tão tosca quanto essa propaganda. Penso o quanto interessante seria uma propaganda desses produtos em que o "papel principal" fosse de um homem que deseja encontrar um produto de qualidade para ajudar a sua companheira/mãe/irmã a limpar a casa, no mínimo simpático. Parece pouca coisa essa observação? Junte ela à várias outras pequenas atitudes machistas de nosso cotidiano e então teremos como resultado essa sociedade patriarcal na qual vivemos em pleno século 21. 

Somos todxs Camilas

"A lembrança do silêncio
Daquelas tardes, daquelas tardes
Da vergonha do espelho

Naquelas marcas, naquelas marcas" (Camila, Camila - Nenhum de Nós)


                                                                                                foto: ilustração/Google
Crescemos ouvindo a frase "Briga entre marido e mulher: ninguém mete a colher" e a mulher seguia sendo humilhada e apanhando diariamente, muitas vezes até a morte. Os filhos assistiam às agressões calados e em alguns casos (sem generalizações) repetiam com suas companheiras o que haviam aprendido com seus pais: o comportamento de um "bom varão" (como eu odeio essa palavra: varão). Essa frase antiga e caduca contribuía com uma cultura na qual práticas violentas eram coisas triviais.

Se tem violência contra a mulher a gente mete a colher SIM! Ou deveria pelo menos, entenda-se violência não apenas física (tapas, chutes, etc.) mas também verbal, humilhação, imposição através de grito, assédio moral, entre outros tipos de opressão. Para isso foram criadas as delegacias da mulher, embora essas não funcionem nos finais de semana e estejam em sua maioria localizadas longes das periferias das cidades. Não obstante foi criada a Lei Maria da Penha, baseada na história real de agressão da Maria da Penha que lutou por mais de vinte anos para ter seu agressor preso, durante esse período de tempo sofreu duas tentativas de assassinato e ficou paraplégica. A Lei 11.340/06 foi implantada em 2006 acabou com a penas pagas com cestas básicas e multas, abrange a violência psicológica e patrimonial e o assédio moral, além da violência física e sexual, é claro. Dessa forma a violência contra a mulher deixaria de ser um crime de menor potencial ofensivo.


Entretanto, existe um abismo gigantesco entre o ideal que essa lei propõe e a prática como ela ocorre, infelizmente muitas mulheres ainda tem medo de denunciar seus agressores, isso ocorre porque em muitos casos o homem nem sequer fica preso e as mulheres não recebem uma proteção da justiça, ficando a mercê de seus agressores que desrespeitam as medidas da lei e procuram suas vitimas para "terminar seu trabalho". Não é preciso ir muito longe no tempo para encontrar casos assim, Elisa Samudio é um deles, nada foi feito mesmo após fazer boletim de ocorrência relatando as ameaças que sofria e consequentemente perdeu sua vida através do feminicídio. E que ninguém ao ler esse texto, venha com argumentos machistas do tipo: "não prestava", "maria chuteira" ou coisas grotescas do tipo, afinal, ela era tão mulher como eu e tinha o direito de sair ou se relacionar com quem bem entendesse, esse argumentos machistas só fazem aumentar os índices de violência à mulher.


Segundo dados divulgados pelo Ipea, em setembro de 2013, os índices de feminicídios estão estimados em um à cada uma hora e meia, no entanto acredito ser esse número ainda maior pois muitos dos casos não chegam sequer às estatísticas. Normalmente as agressões são executadas por seus companheiros ou namorados, pessoas nas quais em algum momento da vida pensaram ser de confiança.

A carne mais barata do mercado


                                                                                              foto: ilustração/Google
"E, apesar de tudo
 Ainda sou a mesma!
 Livre e esguia
 filha eterna de quanta rebeldia 
 me sangrou.
 Mãe-África! (...)" (Presença Africana - Alda Lara)

Entre os dados do Ipea, outra estatística triste é a de que 61% das mulheres que sofrem agressões são negras chegando à óbito, volto a afirmar que não confio totalmente nessas pesquisas devido aos casos que não são elucidados. As agressões sofridas por essas mulheres não são recentes, acontecem desde os tempos da escravidão, quando as escravas além de serem obrigadas a trabalhar com os serviços domésticos pesados e sofrerem diversas humilhações nas mãos das "sinhás", eram ainda forçadas e molestadas sexualmente pelos seus "senhores". Daí o surgimento do termo "mulata", que nada mais é do que uma maneira pejorativa de se referir a mulher negra, mulata vem de mula (animal estéril resultante do cruzamento do jumento com o cavalo) e significa um filho(a) de negros com brancos. E cá entre nós, são horríveis as diversas maneiras de se referir a pessoa negra: "de cor", "escurinha(o)", "moreninha(o)", entre outras que infelizmente nos foram ensinadas, mas precisamos esquecer.


Já que o assunto é preconceito, vale lembrar (ou talvez contar, pra quem não sabe) que existe uma lei criada em 2003 que obriga o ensino de história e cultura afrobrasileira e africana do Ensino Fundamental até o Médio, a Lei 10.639/03 foi decretada no dia 09 de janeiro de 2003. Mas, afinal conhecemos alguém que tenha tido essas aulas nos Ensino Fundamental e Médio? Nos nossos cursos de licenciatura tão bem conceituados no MEC existe um estudo à respeito? No meu não teve, terminei o curso de Letras sem saber quem era Alda Lara, por exemplo, existem ainda muitos outros autores e autoras de Literatura Africana, mas infelizmente a lei não é aplicada, alias, muita gente nem sabe que ela existe. 

Voltando à mulher negra, ainda hoje ela é escrava. Escrava da sociedade machista que impõe à elas a condição de "Globeleza" como se o samba no pé, a pele negra e os cabelos afro fossem sinônimo se mulher-sensual-simbolo-do-carnaval, qualquer mulher negra sambando e sempre tem alguém (babaca) pra dizer "olha aí a Globeleza" como se todas as negras gostassem disso ou gostassem de sambar. Como se uma mulher branca não pudesse sambar e uma negra dançar balé. Como se nós mulheres gostássemos de ser o cartão postal do carnaval&futebol nesse país onde o turismo sexual e os casos de estupro sobem absurdamente. 




Precisamos nos unir! 


                                                         foto: ilustração/Google


Simone de Beauvoir defendia que o feminismo estava vinculado a luta de classes, a ideia de que devemos lutar por igualdade plena dos gêneros e que essa consciência só estaria vinculada à mulheres de esquerda, comprometidas com a reestruturação de toda a sociedade, uma vez que as mulheres de visão oposta (direita) não teriam grandes interesses em uma reforma social devido ao seu conservadorismo. Existem visões diferente quando o assunto é feminismo, há grupos que acreditam que a revolução feminina deve ser unicamente feito pela mulheres, assim como o socialismo viria através do próprio proletariado, mas esse será assunto para outra postagem.

O importante é que estejamos todas unidas em prol de um bem em comum que é melhorar as condições de vida da mulher na sociedade, são muitas as reivindicações para esse dia tão aclamado no calendário: 8 de março. Não queremos presentes e nem agrados, flores baratas nas saídas dos supermercados e comerciais simpáticos na televisão. 

Queremos respeito e proteção, queremos que nos olhem acima de suas religiões e convicções, que tirem "seus rosários de nossos úteros" e parem de decidir o que fazemos ou não com os nossos corpos baseando-se no que consideram pecado em SUAS religiões. 

Queremos ser livres, vadias e felizes, a liberdade é nossa por DIREITO!

Feliz dia de Lutas das Mulheres!




Seguem minhas fontes de pesquisa:


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Como não amar Simone de Beauvoir?



Era março de 2013 e eu procurava um tema ligado a literatura estrangeira para o trabalho de conclusão de curso, havia em mente uma ideia fixa: trabalhar com a mulher na literatura. Durante a pesquisa me deparei com muitas escritoras interessantes e de diferentes épocas, cada uma com a sua influência na literatura e nas gerações. Entrentanto, uma me chamou a atenção por sua competência e ousadia: Simone de Beauvoir. Em nosso TCC (foi realizado em grupo) fizemos uma análise sobre a estética existencialista, a trajetória de Simone de Beauvoir e a sua inflûencia na sociedade desde a época até os dias de hoje, além do estudo comparativo de suas obras e aplicação da filosofia existencialista através delas. Beauvoir, foi além dos limites impostos às mulheres na sociedade da qual fazia parte, escreveu excelentes romances metafísicos onde podemos encontrar os traços do existencialismo do qual ela não somente ilustrou, mas também influenciou de forma direta e indireta, ensaios, artigos de revistas, entre outros, dos quais destacam-se os romances: A Convidada (seu livro de estréia), Os Mandarins e O Sangue dos Outros. Porém, o Obra que deu maior notoriedade à escritora são os dois volumes de O Segundo Sexo, publicado em 1949 e dividido em "Fatos e mitos" no primeiro volume, onde traz uma reflexão sobre os fatos e mitos que condicionam a situação da mulher na sociedade e "A experiência vivida" no segundo volume, que apresenta uma análise sobre a condição feminina nas esferas psicológicas, sexual, política e social, ambos encontram-se esgotados e podem ser adquiridos apenas através de sebos e a valores consideravelmente altos. Após a publicação de O Segundo Sexo, Simone foi considerada uma escritora feminista e sua obra é ainda hoje considerada uma das mais importantes para o movimento feminista, o que pouco se comenta é que a principio a escritora rejeitou o título de feminista, pois não concordava totalmente com as ideias do movimento na época. Apenas 23 anos após a publicação de seu mais importante ensaio é que Simone de Beauvoir se declarou de fato feminista, chegando inclusive a assinar um documento no qual relatava ter feito um aborto em defesa do direito das mulheres ao aborto seguro e gratuito e de métodos contraceptivos eficazes ao alçance de todaxs, sendo que na realidade a escritora nunca esteve grávida. Essa foi uma (não muito) breve introdução sobre os motivos que me levaram a estudar Simone de Beauvoir. Segue abaixo a trajetória da escritora, construída através da leitura de suas obras autobiográficas.

A trajetória de Simone de Beauvoir


Simone de Beauvoir, escritora francesa, nascida no ano de 1908 em Paris e filha de uma família burguesa em decadência, contribuiu influenciando o pensamento da corrente filosófica denominada Existencialismo -corrente esta que defende a ideia de que a existência precede a essência, sendo o ser humano proveniente de suas próprias escolhas. Os pensamentos de Simone eram influenciados por Soren Kierkegaard e Heidegger, grandes filósofos existencialistas a quem Simone dedicou boa parte da vida em leituras desses autores.
     
Para que se compreenda o pensamento de Simone é preciso retornar à sua infância, quando vivia com seus pais Georges Bertrand de Beauvoir, um advogado em tempo integral e ator amador, e Françoise Brasseur, uma jovem mulher de Verdun. Beauvoir foi uma criança atraente e mimada e já demonstrava uma personalidade forte:

“(...) Tinha caprichos, desobedecia simplesmente pelo prazer de desobedecer. Nas fotografias de família eu mostro a língua, viro as costas e em torno de mim os outros riem. Essas pequenas vitórias animaram-me a não considerar insuperáveis as regras, os ritos, a rotina; constituem as raízes de certo otimismo que devia sobreviver a todos os processos de domação.”
 (BEAUVOIR, 1958, pp. 18)
                                                                                Simone de Beauvoir na infância.

     As diferenças entre as personalidades dos pais são citadas por Simone com um ingrediente no qual ela acredita ser inclusive, uma das razões pela qual tenha se tornado uma intelectual, conforme o trecho a seguir:


“Minha situação familiar lembrava a de meu pai; ele se encontrara mal assentado entre o ceticismo desenvolto de meu avô e a seriedade burguesa de minha avó. No meu caso também, o individualismo de papai e sua ética profana contrastam com a severa moral tradicionalista que mamãe me ensinava. Esse desequilíbrio que me impelia à contestação explica em grande parte que tenha me tornado uma intelectual”
 (BEAUVOIR , 1958,pp. 45)

     A influência de seu pai foi além dos ensinamentos repassados durante a infância, sendo dele a responsabilidade de haver influenciado Simone na opção de prosseguir com dedicação aos estudos. Costumava dizer às suas filhas:

“‘Vocês, meninas, não casarão’, repetia amiúde. ‘Vocês não tem dote, precisarão trabalhar ‘”  (BEAUVOIR,1958,pp. 106)

     Beauvoir sempre esteve consciente de que seu pai esperava ter um filho, ao invés de duas filhas. Ele afirmava que Simone pensava como um homem, o que lhe agradava muito e desde muito jovem ela distinguiu-se nos estudos. No Curso Désir, primeira escola que frequentou, desenvolveu um grande amor pela aprendizagem e foi uma aluna exemplar. Foi também nesse curso, nos anos finais, que Beauvoir foi apresentada à Filosofia. Por ser um curso de fundamentação basicamente católica, típico das escolas para garotas no inicio do século XX, o contato restringiu-se aos autores clássicos e as noções gerais. Georges de Beauvoir passou seu amor pelo teatro e pela literatura para sua filha. Ele ficou convencido de que somente o sucesso acadêmico poderia tirar as filhas da pobreza. Poupette, sua irmã, tornou-se uma pintora.
     Apesar da forte influência religiosa da mãe exercida durante a infância, aos poucos Simone foi abandonando a crença em Deus, à medida que não achava respostas aceitáveis aos seus questionamentos, de modo que na adolescência declarou incrédula na existência divina, ainda que já tivesse até mesmo cogitado a possibilidade de ser freira:

  “O que havia de embaraçoso era que Deus proibia muitas coisas, mas não exigia nada de positivo, a não ser algumas orações, algumas práticas que não modificavam o curso dos dias. (...) No fundo, os que acreditavam e os que não acreditavam levavam quase a mesma essência. Persuadi-me dia a dia mais de que, no mundo profano, não havia lugar para a vida sobrenatural”
(BEAUVOIR, 1958,. pp. 77)

     É interessante observar que Simone, através de seus questionamentos, possuía um senso crítico apurado, que não era muito comum às mulheres naquela época, sobretudo na idade em que se encontrava. Antes mesmo de chegar à vida adulta, conhecia as diferenças de classes e tinha suas opiniões formadas a respeito:

“Toda a minha educação me assegurava que a virtude e a cultura contam mais do que a fortuna: meus gostos induziam-me a acreditá-lo. (...) Os miseráveis, os moleques, eu os considerava excluídos da sociedade; mas também os príncipes e os militares acham-se insólita afastava-os dele.”
(BEAUVOIR, 1958, pp. 77)

Simone, sua mãe Françoise e Hélène, sua irmã mais nova

Não obstante a influência de seu âmbito familiar e seu senso crítico a respeito da sociedade na qual vivia, Simone obteve também a influência de seu primeiro relacionamento afetivo, com Jacques Champigneulle, com quem a família esperava que ela se casasse e o que, no entanto, não ocorreu. Embora poucas vezes citado em suas memórias, essa relação foi de grande importância à vida de Simone:

“Encarava Jacques como uma espécie de irmão. Ajudava-me a fazer minhas traduções latinas, criticava a escolha de minhas leituras, dizia-me versos. Uma tarde à sacada recitou-me La Tristesse d´Olympio e eu me lembrei com uma dorzinha no coração de que tínhamos sido noivos. (...)”
(BEAUVOIR, 1958, pp. 123)

     Outro fato que influenciou na vida de Simone, foi a perda precoce de sua grande amiga Elizabeth Le Coin, conhecida como Zazá. Grande parte de sua mudança e ideologia teve influência de Zazá. Segundo a autora, foi através da amiga que ela escolheu não casar-se e nem ser freira. Zazá tinha pensamentos críticos aos valores burgueses e repudiava os comportamentos da sociedade. Falava o que pensava para quem o quisesse ouvir. Coisas que Simone também pensava, mas não tinha coragem de dizer em voz alta. O trecho a seguir relata o sentimento que permeou Simone após a perda da amiga:

“Juntas havíamos lutado contra o destino lamacento que nos espreitava e pensei durante muito tempo que pagara minha liberdade com sua morte”
(BEAUVOIR,1958, pp. 368)


     Finalmente, seu encontro com Sartre ocorreu durante a faculdade. Simone relata em suas memórias o sentimento de identificação que teve ao conhecê-lo melhor, sentimento esse que se assemelha a um amor desejado aos quinze anos. Segundo ela, via nele alguém cuja até mesmo as manias eram semelhantes:

“Sartre correspondia exatamente aos meus sonhos de quinze anos: era o duplo, em quem eu encontrava, elevadas ao extremo, todas as minhas manias. Com ele, poderia sempre tudo partilhar. Quando o deixei, em princípio de agosto [de 1929], sabia que nunca mais ele sairia da minha vida.”
 (BEAUVOIR, 1958,pp. 345)

     O sentimento de Simone para com Sartre era recíproco; na obra “Diário de uma guerra estranha”, o autor comenta sobre a relação de ambos:

Apenas minhas relações com Castor* escapam ao absurdo da morte porque elas são perfeitas e, em cada instante, tudo o que elas podem ser. Minha única expectativa é que elas continuem indefinidamente.      
(SARTRE, 1976. pp.46)

                                                                                              Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre

Desenvolveu-se a partir de então uma relação que durou por toda a vida. Simone passou a ser carinhosamente chamada de Castor por Sartre, esse apelido não dado por ele, na verdade foi seu amigo Maheu. O motivo era a semelhança do sobrenome Beauvoir com a palavra Beaver, castor em inglês, e porque Simone era trabalhadora como um castor. Em vários livros do autor lê-se na dedicatória: “Ao Castor”. 


     Caminharam lado a lado, dedicando um ao outro muito mais do que sentimentos, mas também conhecimento, viagens, estudos e livros, numa relação aberta na qual o único compromisso de ambos era com a liberdade e havia espaço para relações paralelas, entre elas uma de grande relevância que teve com o escritor norte-americano Nelson Algren. Essa parceria durou até o final da vida de Sartre, como consta na última obra de Simone: “A Cerimônia do Adeus”; obra narra os dez últimos anos de vida de Sartre e o desenvolvimento de sua doença, que o levou a cegueira total. Trata-se de uma obra extensa e de grande valor sentimental. Ainda no prefácio, Simone anuncia que esse será seu último livro:

“Eis aqui meu primeiro livro - o único certamente - que você não leu antes que o imprimissem. Embora todo dedicado a você, ele já não lhe concerne. “
(BEAUVOIR, 1982, prefácio)
         
               Após a morte de Sartre, Simone viveu ainda durante seis anos, porém muito debilitada devido a uma pneumonia adquirida durante a degeneração da saúde de seu companheiro, época em que descuidou-se absolutamente de sua saúde por conta da doença que ele enfrentava. Simone e Sartre encontram-se enterrados no mesmo túmulo, como não haveria de ser diferente após terem compartilhado toda a vida.

                                Túmulo onde Simone e Sartre estão sepultados.

A trajetória de Simone ainda muito mais extensa e interessante do que vimos até aqui, há ainda muito o que abordar, como o envolvimento direto com o feminismo, sua visita ao Brasil, entre outros assuntos de um material cuja fonte é inesgotável.


terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Eis um começo...


Ana Carolina, 27 anos. Já vi muitas coisas interessantes, outras mais pretendo ver...  Cansada de guardar opiniões e sensações, resolvi criar esse blog para compartilhar uma parte do meu mundo. Espero haver pessoas interessadas em ler e espero mais, pessoas que queiram acrescentar, compartilhar e até mesmo não concordar.
Pronto, eis um começo e boa leitura.

Ana Carolina